Que o mundo tem uma ordem mais alta e que a verdade se esconde por trás das aparências é uma evidência que se manifestou desde muito cedo na interpretação dos seus mistérios. Já no homem arcaico assim era. Homero e hesíodo assim o justificam. O que é a mitologia clássica senão uma interpretação ingénua dessa ordem transcendente que se pressente mas não se nos apresenta de forma clara? A mitologia Grega apresenta-se como uma explicação inexorável para os mistérios do mundo. Afinal de contas, a diferença entre a mitologia clássica e a ciência baseia-se nos mesmos pressupostos que a diferença entre a religião e a ciência – Enquanto a ciência assume que a essência do mistério está ao alcance da superação, a religião não. É assim que toda a parafernália dos deuses Gregos tem a suprema palavra na decisão dos destinos dos homens e que estes pouco ou nada podem fazer para alterar essa ordem predeterminada dos acontecimentos. Constata-se que os seres humanos são meros títeres nos jogos dos Deuses. Também toda a ordem natural, aquilo a que podemos designar por mundo físico, tem a sua origem e fundamentação num Deus. Salvo Raras ocasiões, como no mito de Prometeu, o homem não tem o poder para conciliar o seu próprio destino. Prometeu foi castigado por ter ousado roubar aos Deuses o segredo do fogo. Prometeu ousou romper a ordem natural ao superar uma actividade reservada aos Deuses. E os Deuses não poderiam admitir que o homem aspirasse à divindade. O inexorável destino que traça de modo inflexível a vida está também patente nas tragédias Gregas. No entanto, esta inexorabilidade tendia para a mitigação. O homem aspirava às rédeas do seu próprio destino. E assim, algures nos anais dos tempos, a leitura e interpretação dos mistérios do mundo iria sofrer uma inflexão que perduraria na história do conhecimento. A passagem da mitologia para a filosofia da natureza ditaria uma inflexão que dotaria os homens de um poder inédito até então. Algures no primeiro milénio antes do nascimento de Cristo, o homem assumiria um papel mais activo no seio da natureza. Agora o homem não era mais um simples joguete da natureza. A natureza que se cuidasse porque o homem assumira o projecto de desvendar os seus segredos.
Desde muito cedo que o ser humano pressentiu os insondáveis desígnios do englobante. Por um lado, tendo em conta a prismática negativa, surgem na vida ocorrências e acontecimentos que não pode controlar em absoluto e que vão contra a sua expressa vontade. Por outro, tendo em conta a prismática positiva, os fenómenos concretos do mundo físico surgem envolvidos por uma áurea misteriosa que deixam transparecer uma ordem transcendental à própria ordem visível do concreto em si. Decorreriam ainda uns bons milénios até que Galileu nos presenteasse com a sugestão de que o universo estaria escrito em linguagem matemática, um bom par de séculos até que o valor da pura lógica fosse capaz de manter por si só um sistema como acontece na informática; no entanto, desde muito cedo que o ser humano pressentiu que “a verdade gosta de se esconder por trás das aparências”, e que a razão tem corações que a própria razão desconhece. Se não fosse assim o ser humano encararia a ciência ao estilo da imediatez animal, que apenas vive para o instante, por outro lado, tendo agora em conta a prismática negativa, seria senhor absoluto do seu destino e todas as ocorrências na sua vida seriam produto expresso dos desígnios da sua hipotética omnipotente vontade. Mas a realidade da vida não é esta última. O “ser”, tanto a partir da perspectiva negativa, como da positiva, esconde mistérios que nos transformam em prisioneiros dum destino que por ora não controlamos. Se essa condição será perfectível não cabe a mim afirmar, deixo aqui aberta a possibilidade. Alguns pensadores do absoluto crêem nesse movimento ulterior de superação, o fim dos tempos concorrente à perfeição. Por mim, mantenho-me agnóstico quanto a essa hipótese. Declaro-me contudo radicalmente anti-relativista. Mas voltemos ao despertar da consciência da perfectibilidade, essa vontade de previsibilidade que preside à vontade de saber, (…)
ONTOLOGIA. Este termo foi usado pela primeira vez no sec. XVIII por Wolff. No entanto a formulação dos problemas a que procura dar respostas é bem mais antiga, as suas referências perdem-se nos confins dos tempos. A ontologia estuda as cambiantes do “ser”. Neste último termo “cabe o céu e a terra”, embora à partida possa parecer bem mais restrito. O “Ser” envolve toda uma panóplia de variáveis que nos escapam aos primeiros relances. Para compreender isto basta pensar a medida imensa em que a existência duma pedra difere da existência dum ser vivo. Depois há que considerar as diferenças no “ser” nos próprios seres vivos. É que a consciência da ideia pertence também ao domínio do “ser”. Que características podemos associar ao “ser” das ideias? As ideias “são”, disso não há a menor dúvida. No entanto, à semelhança da pura energia, as ideias não são palpáveis, não pertencem ao concreto material. Da mesma forma que ninguém pode negar as ondas hertzianas, também ninguém poderá negar que as ideias existem, daí terem “ser”. Depois surge o problema ontológico do devir - a mudança. É que para lá da existência singular que caracteriza cada ser na sua particularidade, teremos que contar por sua vez com o englobante. O englobante poder-se-á compreender mais facilmente se tivermos em conta, a título de exemplo, o evolucionismo de Darwin. Não há dúvida que o mundo não é extático, muda constantemente. Mas se pensarmos na causa primeira dessa mudança, na sua força motriz e nos seus motivos, no que lhe subjaz, teremos que nos render às evidências e admitir que estamos perante uma situação limite. Uma situação limite caracteriza-se por dar luz a um problema que apenas se pode conceber. Há muitas situações limite, sendo que a própria ciência não pode ter a arrogância de negar os problemas que transcendem o método experimental e a esfera do concreto. A própria ciência contemporânea não pode passar sem a fase especulativa. Todas as conquistas do conhecimento nascem na imaginação.
Esta é uma muito insignificante amostra das variáveis que subjazem à imensa problemática do “ser”. Até que ponto Augusto Comte não terá exagerado quando sugeriu que o conhecimento havia atingido a fase da sua maturidade com o advento do racionalismo? (…)