Gostaria de aqui deixar recomendada a leitura de “O Papalagui”, ou a releitura para os que já leram. “O Papalagui” é uma obra escrita sem hipocrisia, à imagem de quem não teme ser considerado ingénuo ou demasiado simplista – é dito, nada mais nada menos de o que se pensa, sem rodeios nem ambiguidades. Não deixa, contudo, na sua simplicidade, de invocar questões filosóficas e antropológicas da mais profunda seriedade. É um livro curto, que se lê rapidamente, mas que deixa uma marca duradoura.
“O Papalagui” descreve a sociedade Europeia segundo as viagens do um chefe da tribo Upolu, pertencente ao grupo das ilhas de Samoa. Era uma vontade já antiga que levou Tuiavii a empreender uma longa viagem por zonas Europeias, de modo a conhecer as terras e os hábitos dos “Papalagui” (designação dada aos brancos naquelas regiões do pacífico). O livro tem por base as conclusões tiradas a partir das suas observações.
Vou deixar aqui transcritos alguns trechos do capítulo que Tuiavii dedica ao Tempo,
“O Papalagui nunca tem tempo”
Começa por descrever o relógio, referir os vários tipos de relógio, e a divisão do sistema horário. Depois continua assim…
(…) Ao ouvir o barulho da máquina do tempo, queixa-se o Papalagui assim: «que pesado fardo! Mais uma hora que se passou!» E ao dizê-lo, mostra geralmente um ar triste, como alguém condenado a uma grande tragédia. No entanto, logo a seguir principia uma nova hora!
Como nunca fui capaz de entender isto, julgo que se trata de uma doença grave. «O tempo corre mais veloz do que um cavalo!», «Dá-me uma pouco mais de tempo» - tais são os queixumes do homem branco.
Dizia eu que se deve tratar de uma doença… Suponhamos, com efeito, que um branco tem vontade de fazer qualquer coisa e que o seu coração arde em desejo por isso: que, por exemplo, lhe apetece ir deitar-se ao sol, ou andar canoa no rio, ou ir ver a sua bem-amada. Que faz ele então? Na maior parte das vezes estraga o prazer com esta ideia fixa: «não tenho tempo para ser feliz». Mesmo dispondo de todo o tempo que queira, nem com a melhor vontade o reconhece. (…)
(…) Pretendem alguns Papalaguis que nunca têm tempo. Correm desvairados de um lado para o outro como se estivessem possuídos pelo aitu (diabo) e causam terror e desgraça onde quer que cheguem, só porque perderam o seu tempo. Esse estado de frenesi e demência é uma coisa terrível, uma doença que nenhum homem de medicina pode curar, doença que atinge muitos homens e que os leva à desgraça. (…)
(…) Reparei, muitas vezes, que eles, no meu lugar, se sentiam envergonhados quando, ao perguntarem-me a idade que tinha, eu não era capaz de responder a tal pergunta, que só me dava vontade de rir! «Mas não podes deixar de saber a tua idade!» Eu calava-me, pensando para comigo: mais vale não saber.(…)
(…) Raros são os que, na Europa, dispõem realmente de tempo. Ou talvez nem sequer existam. É por isso que eles passam a vida a correr à velocidade de uma pedra lançada ao ar. A maior parte olha para o chão, quando caminha, e balança muito os braços para ir mais depressa. Quando os detêm, gritam indignados: «que ideia a tua, de me vires perturbar! Não tenho tempo! E tu, trata de empregar bem o teu!» Tudo se passa como se o que anda depressa tivesse mais valor e bravura do que o que vai devagar.(…)
(…) Vi um homem cuja cabeça parecia prestes a estoirar, e cujo rosto passava sucessivamente do vermelho ao verde, um homem que rolava os olhos em todos os sentidos, que abria a boca como um peixe que vai morrer e batia com os pés e com as mãos, tudo porque o seu criado chegara um pouco mais tarde do que tinha prometido. Esse atraso mínimo representava para o amo uma perda irreparável, O criado teve que se ir embora da cabana, pois o Papalagui expulsou-o, dizendo: «já me roubaste muito tempo! Quando um indivíduo não tem a mínima consideração pelo tempo, só estamos a perder o nosso com ele!»(…)
(…) O Papalagui emprega todas as suas forças, bem como a sua capacidade de raciocínio, em tentar ganhar tempo(…)
(…) A meu ver, é precisamente por o Papalagui tentar reter o tempo com as mãos, que ele se lhe escapa por entre os dedos, como uma serpente por mão molhada. O Papalagui nunca deixa que ele venha ao seu encontro. Corre sempre atrás dele de braços entendidos, não lhe concede o repouso necessário, não o deixa apanhar um pouco de sol, tem de ter sempre o tempo ao pé de si, para lhe cantar ou contar qualquer coisa. Mas o tempo é calma, é paz e sossego, gosta de nos ver descansar, estendidos na nossa esteira. O Papalagui não se apercebeu ainda do que o tempo é, não o compreendeu. É por isso que o maltrata, com os seus modos rudes.(…)
(…) Oh! Meus queridos irmãos! Nós nunca nos queixámos do tempo, amámo-lo e acolhemo-lo tal como ele era, nunca corremos atrás dele, nunca tentámos amalgamá-lo ou cortá-lo em pedaços. Nunca ele nos deixou desesperados ou acabrunhados. Se algum de nós há aí a quem falte o tempo, que diga! Todos nós o possuímos em quantidade, não temos razões de queixa, Não precisamos de mais tempo do que o que temos, temos sempre tempo de suficiente. Sabemos que atingiremos o nosso alvo a tempo, e que muito embora ignoremos quantas luas se passaram, o Grande Espírito nos chamará quando lhe aprouver. Devemos curar o Papalagui da sua loucura e desvario, para que ele volte a ter a noção do verdadeiro tempo que tem perdido. Devemos destruir as suas pequenas máquinas do tempo e levá-lo a confessar que há muito mais tempo do nascer ao pôr-do-sol do que ao homem lhe é dado gastar.(…)
Para aguçar a curiosidade e quem sabe - levar alguns de vós a ler o texto integral